sábado, 10 de junho de 2017

A CEIA DOS CARDEAIS. Júlio Dantas (1876 - Algarves - 1962 - Lisboa).

Clássico do teatro português, representado pela primeira vez  no Teatro D. Amélia, em 28 de Março de 1902.

“Uma grande sala, no Vaticano. Paredes cobertas de panos de Arras - Amplos tectos de caixão, com apainelamentos de talha doirada - Um retrato de cardeal vermelho, sobre o fogão - À D. baixa, o cravo, o violoncelo e o violino de um terceto clássico - Estantes altas de coro - Luzes - Ao fundo, largo tamborete onde repousam as capas, os chapéus, os bastões - À E. baixa, grande armário pesado de baixela de oiro e prata lavrada - Quase a meio, bufete onde ceiam os três cardeais: toalha de holandilha, picada de rendas; serviço de Sèvres, azul e oiro; cristais (...)”.   
A história se passa numa luxuosa sala do vaticano, na qual, três cardeais velhinhos lamentam o peso do tempo e relembram os seus amores: Cardeal Gonzaga (que é português), Cardeal Rufo (que é espanhol) e Cardeal Montmorency (que é francês) encontram-se sentados numa mesa enquanto comem a ceia da noite. No trecho que segue, depois de uma pequena discussão entre o Cardeal Montmorency e o Cardeal Rufo, que apesar de muito amigos sempre gostam de trocar provocações entre si, sendo esta, como sempre, apaziguada pelo Cardeal Gonzaga.

(...) CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso
 “Vamos nós ao faisão?
 (Trinchando, com galanteria:)
 
Se permitem, eu sirvo. É um faisão doirado,
Mau político, sim, mas todo embalsamado
De trufas. Nunca fez encíclica nenhuma;
Não usou solidéu por sobre a áurea pluma,
E, se um dia assistisse a qualquer consistório,
Dormiria como eu - e como São Gregório”.

E assim, em meio a garfadas, certamente embalados pelas trufas e pelo Xerez amadeirado, vieram à tona, junto com as borbulhas do champanhe, as lembranças mais remotas e contidas de antigos amores esquecidos. (...)

Assim, os três prelados velhinhos do Sacro Pontificado passam a relembrar de seus amores. Eis os mais belos trechos:


CARDEAL DE MONTMORENCY, tristemente
Tão longe a mocidade...

CARDEAL GONZAGA, numa lágrima
E o fâmulo tão perto!
Caiu-nos sobre a fronte a neve dos caminhos...

CARDEAL RUFO
Envelhecemos tanto!

CARDEAL GONZAGA, a RUFO
Estamos tão velhinhos...
Já fez sol, para nós.. Sol! Pois não é verdade?

CARDEAL RUFO, como num sonho
Sol!

CARDEAL DE MONTMORENCY, a um dos fâmulos
Mais champanhe.

CARDEAL GONZAGA
Sol! - Nós que somos a saudade.
O pensar que se amou, que se viveu... O amor!
- Um tronco envelhecido a cuidar que deu flor!
Depois, num embevecimento:
Misterioso monte é neste mundo a vida!
Todo rosas abrindo, ao galgar na subida,
E a velhice, ao descer, toda cheia de espinhos...
- Ai, tão velhinhos!

CARDEAL RUFO, tristemente
Tão velhinhos!

CARDEAL DE MONTMORENCY, olhando os dois, com ternura
Tão velhinhos!

Então os três cardeais começam a relembrar o passado e resolvem trocar confidências:

CARDEAL GONZAGA
É. É uma criança. Em tendo a nossa idade,
Verá que o relembrar coisas da mocidade
É o prazer maior que podem ter os velhos...
Para nós, recordar é cair de joelhos.

CARDEAL DE MONTMORENCY
Eu sei, eu também sei... Recordar é viver,
Transformar num sorriso o que nos fez sofrer,
Ressurgir dentro d’alma uma idade passada,
Como em capela d’oiro há cem anos fechada,
Onde não vai ninguém, mas onde há festa ainda...
Se eu não hei-de saber como a saudade é linda!
Se eu não hei-de saber! - É curioso, Eminências.
Não fizemos ainda as nossas confidências,
E somos como irmãos... Tão amigos!

CARDEAL RUFO
É certo!

CARDEAL GONZAGA
Confidências?

CARDEAL DE MONTMORENCY
Então... A morte vem tão perto!
Olhemos para trás, lembremo-nos da vida...
A saudade de um velho é uma estrada florida!

CARDEAL RUFO
Confidências de amor!

CARDEAL DE MONTMORENCY
Porque não há-de ser?
Em toda a mocidade há um riso de mulher.
Contemos esse riso uns aos outros... Nós três...
Recordar um amor é amar outra vez!
Ninguém nos ouve...

CARDEAL GONZAGA
Mas, Eminência!

CARDEAL DE MONTMORENCY
O maior
Amor da nossa vida!

CARDEAL GONZAGA, com pudor, tapando a cara
Oh!

CARDEAL RUFO, como quem sonha
O maior amor!

CARDEAL GONZAGA
Mas nós somos cardeais!

CARDEAL RUFO, entusiasmando-se
O sentimento humano
Em toda a parte vive, até no Vaticano!
E esta púrpura - ai não, seria crueldade!
Pode matar o amor, mas não mata a saudade!

Fica então decidido que estes trocariam confidências de amor. Daí cada um começa a contar a história do maior amor de sua vida. Neste momento, transparece através do falar, o que representava o amor para cada um deles.
O Primeiro que conta sua história é o Cardeal Rufo, na sua história, que é cheia de grandeza e lutas dignas de um verdadeiro fidalgo, ele demonstra que o importante para ele no amor, igual a Don Juan, era a conquista.

CARDEAL RUFO, depois de um ligeiro cumprimento a ambos

Nem pode calcular sequer, Vossa Eminência,
Como o meu buço loiro irradiava insolência!
Não matei em duelo o Sol, pelas alturas,
Só para não deixar Salamanca às escuras!
A respeito de amor, como essência divina,
Imitei o Don Juan de Tirso de Molina:
O amor, por mais ardente ou mais puro que fosse,
Morria, ainda em flor, com a primeira posse!
Detestava a mulher depois de conquistada:
A conquista era tudo: o resto, quase nada.
Queria lá saber de aventuras serenas!
Para mim, o amor era o duelo, apenas,
Batia-me ao acaso, enfim, por qualquer cousa,
Um beijo, uma mulher, uma pedra preciosa,
Uma flor que se atira, asa de oiro pelo ar,
A esmola de um sorriso, a graça de um olhar...
Já não tinha valor para mim nenhum bem,
Se não fosse preciso ir disputá-lo a alguém,
Lutar, vencer, rasgar, ardendo de desejo,
Com a ponta da espada o caminho de um beijo,
Pomar de assalto o Amor, ao Sol de mil perigos,
Como um rubro estandarte entre mãos de inimigos!

O próximo a contar sua história é o Cardeal Montmorency. Para ele o amor não era só a conquista por meio da coragem/bravura, mas sim, era saber fazer uso das palavras como meio de sedução.

CARDEAL DE MONTMORENCY
Tinha espírito... - Enfim, o amor, pensando bem
Não é só bravura, é o espírito também,
Essa força, essa chama, imperceptível quase,
Que é a alma do gesto e a nobreza da frase,
Qualquer coisa de fino, e flexuoso, e ardente,
Que nos faz ajoelhar irreflectidamente,
Perturba, vence, infiltra, e, mal afora à boca,
Veste de seda e oiro a confissão mais louca...
Que seria o amor sem espírito, Eminência?
Uma paixão brutal ou uma impertinência,
Sem pureza, sem tudo aquilo que resume
O coração num beijo e a alma num perfume!
Com uns punhos de renda, até a ofensa é linda!
Pode ser fina a espada; a frase é mais ainda:
Uma escola subtil de esgrima delicada...
Procura o coração, a frase, como a espada,
E desfaz-se, ao ferir, em pedras preciosas,
Como os raios de Sol quando ferem as rosas...
Se ao homem vence a espada e se é belo vencer,
O espírito faz mais, - porque vence a mulher!

E por último, num sobressalto, o Cardeal Gonzaga revela o que é o amor para ele, ou seja, o sentimento.


CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios de brilho, a expressão transfigurada
Em como é diferente o amor em Portugal!
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento...
é o amor coração, é o amor sentimento.
Uma lágrima... Um beijo... Uns sinos a tocar...
Uma parzinho que ajoelha e que vai se casar.
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora:
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora!
O amor simplicidade, o amor delicadeza...
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa!
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade,
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade,
Numa ternura casta e numa estima sã,
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã...
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas,
Como se em comunhão se entendessem as rosas,
Como se todo o amor fosse um amor somente...
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente!

CARDEAL RUFO
Também vossa Eminência amou?

CARDEAL GONZAGA
Também! Também!
Pode-se lá viver sem ter amado alguém!
Sem sentir dentro d’alma - ah, podê-la sentir! –
Uma saudade em flor, a chorar e a rir!
Se amei! Se amei! - Eu tinha uns quinze anos, apenas.
Ela, treze. Uma amor de crianças pequenas,
Pombas brancas revoando ao abrir da manhã...
Era minha priminha. Era quase uma irmã.
Bonita não seria... Ah, não... Talvez não fosse.
Mas que profundo olhar e que expressão tão doce!
Chamava-lhe eu, a rir, a minha mulherzinha...
Nós brincávamos tanto! Eu sentia-a tão minha!
Toda a gente dizia em pleno povoado:
“Não há noiva melhor para o senhor Morgado,
Nem em capela antiga há santa mais santinha...”
E eu rezava, baixinho: “É minha! É minha! É minha”
Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar,
Ficávamos a olhar um para o outro, a olhar,
Todos cheios de Sol, ofegantes ainda...

Numa grande expressão de dor:

Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda...
E, uma noite, a minha alma, a minha luz, morreu!
Numa revolta angustiosa:
Deus, se m'a quis tirar, p’ra que foi que m'a deu?
Para quê? Para quê?

CARDEAL DE MONTMORENCY, ao vê-lo erguer-se, amparando-o:
Oh! Eminência...

CARDEAL RUFO, curvando-se também para o amparar, comovido:
Então...

CARDEAL GONZAGA
Ai! Pois não via, Deus, que eu tinha coração!

CARDEAL RUFO
Eminência...

CARDEAL GONZAGA, caindo sobre a cadeira, a soluçar
Não via! Ah! Não via! Não via!
Julgou que de um amor outro amor refloria,
E matou-me... E matou-me!

CARDEAL DE MONTMORENCY
Eminência...

CARDEAL GONZAGA
Afinal,
Foi esse anjo, ao morrer, que me fez cardeal!
E eu hoje sirvo a Deus, - a Deus, que m’a levou...

CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY, limpando uma lágrima furtiva, enquanto as onze horas da noite soam no Vaticano:
“Foi ele, de nós três, o único que amou”.
...


JÚLIO DANTAS, poeta, teatrólogo, político, tradutor, médico, jornalista, Presidente da Academia das Ciências de Lisboa. Nasceu em Algarve¹, em 19 de Maio de 1876 e faleceu em Lisboa, em 25 de Maio de 1962, aos 86 anos. Um dos mais conhecidos intelectuais portugueses das primeiras décadas do século XX distinguiu-se pela galanteria elegante e mundana de seus versos. Dentro de suas vastas criações estão: “Outono em Flor” (comédia em 3 atos); "Elogio do Sorriso”; “A Severa” ( romance); “As Modas Masculinas do Século XIX, em Portugal”. Como dramaturgo celebrizou-se através da sua pequena peça com apenas três atores: “A Ceia dos Cardeais” (1902), uma das mais populares produções teatrais portuguesas de todos os tempos.

OBRAS

Poesia:

• Nada (1896)
• Sonetos (1916)

Teatro:

• O Que Morreu de Amor (1899)
• Viriato Trágico (1900)
• A Severa (1901)
• Crucificados (1902)
• A Ceia dos Cardeais (1902)
• Paço de Vieiros (1903),
• Um Serão nas Laranjeiras (1904)
• Rosas de Todo o Ano (1907)
• Auto de El-Rei Seleuco de Camões (1908)
• O Reposteiro Verde (1912)
• Soror Mariana (1915)
• Frei António das Chagas (1947)

Prosa:

• Outros Tempos (1909)
• Figuras de Ontem e de Hoje (1914)
• Pátria Portuguesa (1914)
• O Amor em Portugal no Século XVIII (1915)
• Abelhas Doiradas (1920)
• Arte de Amar (1922)
• Cartas de Londres (1927)
• Alta Roda (1932)
• Viagens em Espanha (1936)
• Marcha Triunfal (1954)

Traduções:

• Rei Lear (de William Shakespeare)
• Cyrano de Bergerac (de Edmond Rostand)
• O Azougue (de Paul Saunière). Lisboa: Empresa Editora, 1898.
• O Caminheiro (tradução da peça em 5 actos homônima de Jean Richepin). Lisboa: Livraria da Viúva Tavares Cardoso, 1905.
(Fonte: wikipedia).


¹ - Enciclopédia e Dicionário KOOGAN / HOUAISS, 2000.


Leia Mais:
http://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/contraponto/julio-dan...

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