sábado, 10 de junho de 2017

PAULO MENDES CAMPOS (1922 - BH, MG - 1991). Do tempo, de Minas e das coisas de lembrar.



Paulo Mendes Campos. Poeta, cronista e jornalista, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 28 de fevereiro de 1922 e faleceu na mesma cidade em 01 de julho de 1991 aos sessenta e nove anos de idade.  Está entre os maiores cronistas brasileiros, sua obra é vinculada à terceira geração do Modernismo, sua temática gira em torno do Tempo, da Morte, da Memória, ou vice versa... No contexto fala de coisas que havia na casa, da infância, de Minas, das memórias. Aos dezoito anos, em Belo Horizonte, ingressou em diferentes faculdades como: a de Direito, a de Odontologia e de Veterinária, mas não chegou a concluir nenhum dos cursos, sempre dizia que tinha somente o certificado de datilografia.  Iniciou sua atividade jornalística por volta dos vinte anos de idade, posto que, em 1942 já era diretor do suplemento da Folha de Minas e colaborador do jornal O Diário e do jornal O Estado de Minas. Em 1945 participou do I Congresso Brasileiro de Escritores, ano em que passa a viver no Rio de Janeiro, a princípio como funcionário do Instituto Nacional do Livro. Em 1946 passa a ser redator do Correio da Manhã e trabalhou ao lado de Álvaro Lins, Graciliano Ramos e Mário Pedrosa, dentre outros.  Exerceu as funções de Diretor da Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional. Publicou seu primeiro livro de poesia, A Palavra Escrita, em 1951. Nas décadas seguintes publicou vários livros. Em 1966 recebeu o prêmio Alphonsus de Guimarães, concedido pelo Ministério de Educação e Cultura, pelos livros de poesia Testamento do Brasil e O Domingo Azul do Mar. Muitas de suas poesias e crônicas, publicadas na imprensa, em jornais antigos e em revistas, estão ainda dispersas. Esta é uma delas, Na Grota foi um tesouro encontrado na revista Manchete e copiado à mão para ser guardado. E foi. A revista se perdeu nas voltas que o mundo dá, mas o tempo que tudo destrói, não conseguiu destruir esta página, posto que muitas vezes lida – como um presságio? - é sabida de cor, ficou na imaterialidade e na eternidade da memória. Não se apaga mais. Aqui ele conta que tinha um telhado e tinha manhãs, tinha uma cozinha e tinha girassóis e beija-flores que podiam ter vindo de qualquer canto das Américas...


 NA GROTA - Paulo Mendes Campos

Tinha verdejando bem uma muda de pau-brasil patrioticamente conquistada no Ministério da Agricultura
Tinha um príncipe-negro iluminando o jardim com a luz de terras profundas de Minas Gerais
Tinha uma buganvilha-brigue já firmada para a vida alastrando-se sobre a pedra da cozinha
Tinha uma cozinha
Tinha onze - horas róseas e branquinhas compondo os quadros de Renoir pela margem do caminho
Tinha dinheiro-em-penca reluzindo no orvalho das manhãs
Tinha manhãs
Tinha uma quaresmeira de duas cores à beira do riacho
Tinha sempre florindo aquela dadivosa Maria-sem-vergonha
E tinha uma limeira apanhada no mato que tinha vencido a luta contra a morte
Tinha rosas amarelas, outras brancas e outras vermelhas, só não tinha a ainda não inventada rosa azul
Tinha as mesmas delicadas balsaminas que Collette cultivava e amava no deserto da idade avançada
Tinha pimenteiras nascentes
E até uma calha no telhado para coletar água da chuva
Tinha um telhado
Tinha latas de cerveja geladinhas esperando a sede dos finais de semana
Tinha um aparelho de tostar fatias e um aparelho de fondue com aquele fulgor bonito e cigano do cobre batido
Tinha Maria Aparecida
E a renda verde da hera subindo nos muros da frente
Tinha pinga de Paracatu
E queijo de Minas pra botar no pão
Tinha amigos
De Minas, do Rio e beija-flores que poderiam ter vindo de qualquer canto das Américas
Tinha dois melros, cinco canários, dois do reino e um bicudo
E até o bichano independente e ostensivo miando em cima do telhado
Tinha um telhado
E tinha uma calha pra coletar água da chuva
Tinha onze filhotes das duas cadelas vira-latas, todos uma graça
Tinha livros... Inclusive um manual do jardineiro
Tinha na horta salsa e cebolinha e mostarda
Tinha o cheiro do almoço preparando na cozinha
Tinha uma cozinha
Tinha uma rede amarrada numa árvore que tanto podia ser gambá-melado como jacarandá-miúdo
E tinha gansos e galinhas d’Angola
Tinha aipim e macaxeira e batata doce e caqui e mexerica
Tinha um frio que dava para a desculpa de acender a lareira
Tinha vinho nacional bem bonzinho
Tinha barulhinho das águas das nascentes
E o rumor das águas da cachoeira
Tinha água na caixa de sair pelo ladrão
Tinha antúrios, zínias, lírios amarelos, camélias e mastruço pro chá
Tinha chávenas para beber o chá
Tinha pombas chegando e partindo nas tardes azuis
Tinha ouro adornando as manhãs
Tinha manhãs
Tinha cristal da Prússia enfeitando o meio-dia
E tinha o lilás da noite acetinando o silêncio dos sonos
Tinha no bolso um dinheirinho
E uma arara comendo sementes de girassol
Tinha girassóis
Tinha uma coisa diferente e feliz nos ventos da praia
Tinha outra coisa também diferente e feliz na aragem das noitinhas
Tinha os papéis em ordem e os impostos quase pagos guardados na gaveta
Tinha um sabiá morto boiando na água do poço, um sabiá todo ferido sangrando no peito, morto, a boiar no poço
Estava no poço
Tinha rosas e pimenteiras, queijos de Minas e girassóis e amigos e pássaros, tinha um telhado.
Mas tinha um sabiá morto boiando na água do poço
No poço... 


UM POUCO DO MUNDO DE VERSO E PROSA DE PAULO MENDES CAMPOS


Infância – (fragmento)

Sou restos de um menino que passou,
sou rastros erradios num caminho,
que não segue, nem volta, que circunda,
a escuridão como os braços de um moinho.

CAMPOS, Paulo Mendes. Infância. In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984


Em Face dos Últimos Mortos (fragmentos)

O que morreu tem o seu lugar marcado em minha vida. [...] A
penumbra em que [os mortos] repousam é a minha penumbra;
a solidão que alardeiam é a solidão que escondo; [...] a grande
e inexplicável lua dos mortos é a grande e inexplicável lua
que vai de minha infância à minha campa.

CAMPOS, Paulo Mendes. Em face dos últimos mortos. In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984




Pelos pés das goiabeiras,
pelos braços das mangueiras,
pelas ervas fratricidas,
pelas pimentas ardidas,
         fui me aflorando.
Pelos girassóis que comem
giestas de sol e somem,
por marias-sem-vergonha,
dos entretons de quem sonha
        fui te aspirando.
Por surpresas balsaminas,
entre as ferrugens de Minas,
por tantas voltas lunárias,
tantas manhãs cinerárias,
        fui te esperando.
Por miosótis lacustres,
por teus cântaros ilustres,
pelos súbitos espantos
de teus olhos agapantos,
        fui te encontrando.
Pelas estampas arcanas
do amor das flores humanas,
pelas legendas candentes
que trazemos nas sementes,
        fui te avivando.
Me evadindo das molduras
de minhas albas escuras,
pelas tuas sensitivas,
açucenas, sempre-vivas,
        fui me virando.
Pela rosa e o rosedá,
pelo trevo que não há,
pela torta linha reta
da cravina do poeta,
        fui te levando.
Pelas frestas das lianas
de tuas crespas pestanas,
pela trança rebelada
sobre o paredão do nada,
       
fui te enredando.
Pelas braçadas de malvas,
pelas assembléias alvas
de teus dentes comovidos,
pelo caule dos gemidos
        fui te enflorando.
Pelas fímbrias de teu húmus,
pelos reclames dos sumos,
sobre as umbelas pequenas
de tuas tensas verbenas,
        fui me plantando.
Por tuas arestas góticas,
pelas orquídeas eróticas,
por tuas hastes ossudas,
pelas ânforas carnudas,
        fui te escalando.
Por teus pistilos eretos,
por teus acúleos secretos,
pelas úsneas clandestinas
das virilhas de boninas,
        fui me criando.
Pelos favores mordentes
das ogivas redolentes,
pelo sereno das zínias,
pelos lábios de glicínias,
        fui te sugando.
Pelas tardes de perfil,
pelos pasmados de abril,
pelos parques do que somos,
com seus bruscos cinamomos,
        fui me espaçando.
Pelas violas do fim,
nas esquinas do jasmim,
pela chama dos encantos
de fugazes amarantos,
       fui me apagando.
Afetando ares e mares
pelas mimosas vulgares,
pelos fungos do meu mal,
do teu reino vegetal
        fui me afastando.
Pelas gloxínias vivazes,
com seus labelos vorazes,
pela flor que se desata,
pela lélia purpurata,
        fui me arrastando.
Pelas papoulas da cama,
que vão fumando quem ama,
pelas dúvidas rasteiras
de volúveis trepadeiras
        fui te deixando.
Pelas brenhas, pelas damas
de uma noite, pelos dramas
das raízes retorcidas,
pelas sultanas cuspidas,
        fui te olvidando.
Pelas atonalidades
das perpétuas, das saudades,
pelos goivos do meu peito,
pela luz do amor perfeito,
       Vou te buscando.



Se a treva fui, por pouco fui feliz.  
Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.  
Se Deus foi a doença, fui saúde.  
Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.  
Se a luz era visível, me enganei.  
Se eu era o só, o só então amei.  
Se Deus era a mudez, ouvi alguém.  
Se o tempo era o meu fim, fui muito além.  
Se Deus era de pedra, em vão sofri.  
Se o bem foi nada, o mal foi um momento.  
Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.
                        Para que me reflitas e me fites  
                        estas turvas pupilas de cimento:  
                                   se devo a vida à morte, estamos quites.



TESTAMENTO DO BRASIL – Paulo Mendes Campos

Que já se faça a partilha.  
Só de quem nada possui  
nada de nada terei.  
Que seja aberto na praia,  
não na sala do notário,  
o testamento de todos.  
Quero de Belo Horizonte  
esse píncaro mais áspero,  
onde fiquei sem consolo,  
mas onde floriu por milagre  
no recôncavo da brenha  
a campânula azulada.  
De São João del-Rei só quero  
as palmeiras esculpidas  
na matriz de São Francisco.  
Da Zona da Mata quero  
o Ford envolto em poeira  
por esse Brasil precário  
dos anos vinte (ou twenties),  
quando o trompete de jazz
ruborizava a aurora  
cor de cinza de Chicago.  
Do Alto do Rio Negro  
quero só a solidão  
compacta como o cristal,  
quero o índio rodeando  
o motor do Catalina,  
quero a pedra onde não pude  
dormir à beira do rio,  
pensando em nós-brasileiros  
- entrelaçados destinos -  
como contas carcomidas  
de um rosário de martírios.  
De Lagoa Santa quero  
o roxo da Sexta-feira,  
quero a treva da ladeira,  
os brandões da noite acesa,  
quero o grotão dos cajus,  
onde surgiu uma vez  
no breu da noite mineira  
uma alma doutro mundo.  
Da porta pobre da venda  
de todos os povoados  
quero o silêncio pesado  
do lavrador sem trabalho,  
quero a quietude das mãos  
como se fossem de argila  
no balcão engordurado-.  
Ainda quero da vila  
ira que se condensa,  
dor imóvel e dura  
como um coágulo no sangue.  
Da Fazenda do Rosário  
quero o mais árido olhar  
das crianças retardadas,  
quero o grito compulsivo  
dos loucos, fogo-pagô  
de entardecer calcinado,  
a névoa seca e o não,  
o não da névoa e o nada.  
Da cidade da Bahia  
quero os pretos pobres todos,  
quero os brancos pobres todos,  
quero os pasmos tardos todos.  
Do meu Rio São Francisco  
quero a dor do barranqueiro,  
quero as feridas do corpo,  
quero a verdade do rio,  
quero o remorso do vale,  
quero os leprosos famosos,
escrofulosos famintos,  
quero roer como o rio  
o barro do desespero.  
Dos mocambos do Recife  
quero as figuras mais tristes,  
curvadas mal nasce o dia  
em um inferno de lama.  
Quero de Olinda as brisas,  
brisas leves, brisas livres,  
ou como se quer um sol  
ou a moeda de ouro  
quero a fome do Nordeste,  
toda a fome do Nordeste.  
Das tardes do Brasil quero,  
quero o terror da quietude,  
quero a vaca, o boi, o burro  
no presépio do menino  
que não chegou a nascer.  
Dos domingos cor de cal  
quero aquele som de flauta  
tão brasileiro, tão triste.  
De Ouro Preto o que eu quero  
são as velhinhas beatas  
e a água do chafariz  
onde um homem se dobrou  
para beber e sentiu  
a pobreza do Brasil.  
Do Sul, o homem do campo,
matéria-prima da terra,  
o homem que se transforma   
em cereal, vinho e carne.  
Do Rio quero as favelas,  
a morte que mora nelas.  
De São Paulo quero apenas  
a banda podre da fruta,  
as chagas do Tietê,  
o livro de Carolina.  
Do noturno nacional  
quero a valsa merencórea  
com o céu estrelejado,  
quero a lua cor de prata  
com saudades da mulata  
das grandes fomes de amor.  
Do litoral feito luz  
quero a rude paciência  
do pescador alugado.

                                Da aurora do Brasil  
                                - bezerra parida em dor -  
                                apesar de tudo, quero  
                                a violência do parto
                                (meu vagido de esperança).

CAMPOS, Paulo Mendes. Testamento do Brasil. In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.



Sentimento do Tempo
Texto IV – Para Maria da Graça

Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da
Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas. Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a
ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu
modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é
louca. Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a
verdade, Dinah, já comeste um morcego?" Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou
pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada
história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais
forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira. A
sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço:
"Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do
poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem
fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta. Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e
temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de
tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave. A gente vive errando em relação ao
próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de
enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gosta de gatos, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o
que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?" Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos
escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos,
até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão
cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos,
que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou ?" É
bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não
te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste. Disse o
ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida
daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam
romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres
que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria. Os
milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e
mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra
depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e
não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que
nos fazem crescer novamente. E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um
camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário
também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos
ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz
durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem
camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou
em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre
meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa
grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor
que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha
preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que
estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos
sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões. Por fim, mais uma palavra de
bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não
poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado
um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas". Conclusão: a própria dor deve ter
a sua medida: é feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.


SENTIMENTO DO TEMPO

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos dos meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caiam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.

CAMPOS, Paulo Mendes. Sentimento do tempo. In: Poemas. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira; 1984



A Fugacidade de Todas as Coisas (fragmentos)

A ilusão? O engano? Usarei a palavra contra a evidência: a certeza. Queria dizer
o seguinte: ao deitar-me, suaviza-me a certeza de que o meu passado existe em algum lugar. Essa é a constante mais desarrazoada de minhas imaginações. Mas não tem o
exaspero dos que se quebram de encontro ao fato consumado, é uma unção, um sentimento de inocência, uma certeza.
Quando pedia contas ao tempo, em minha adolescência, a náusea me
desnorteava. Essa necessidade, fundamental em mim, de não perder o tempo, de
transformá-lo em espaço, era forte como a loucura. Inclinei-me sobre os livros. Anotei
em um caderno o desenvolvimento algébrico de meu desespero. [...] A lógica com que
procurava salvar do naufrágio o meu passado levou-me ao limite extremo do abismológica.
Singular é que o presente só me interessava pela sua possibilidade de converterse
em passado [...]. Perdendo o minuto que passa, podia preservá-lo, recolhê-lo entre as
minhas lembranças, e só então apreender a sua fulgurante autenticidade. Confesso que o
futuro, o que ainda não se transfigurou em saudade, pesava-me como se fosse vida
desperdiçada.
[...] Sei que o meu passado me espera e me convida e me dispensa de tantas
realidades inacreditáveis. Porque o excesso de consciência é como o excesso de luz. O
fulgor obsessivo do presente fatiga alguns espíritos. [...] Acredito assim que o mundo
exterior seja formado de lembranças.
O passado é o espaço de cada um. O que aconteceu é tarefa já cumprida, a vida
que se obteve de percepções ilusórias, o reino tranqüilo dos demasiadamente emotivos.
O que aconteceu já é eternidade.
[...]
Admito, no entanto, que às vezes o presente já tenha, em toda a sua evidência,
uma suavidade de lembrança. São raros momentos [que vêm] encontrar-me em uma tal
limpidez de alma, em um tal despojamento das ambições e dos medos em que nos
destroçamos, que não consigo mais distinguir aquele fulgor obsessivo de que falava.
Tem uma suavidade de lembrança. Possivelmente é uma lembrança. Já não sou eu que
lembro e configuro as coisas: sou lembrado. [...] Me acomodo em uma gratidão feita de
serenidade porque o meu passado se lembrou de mim e veio ver-me. A despeito de
minha miséria, dos meus olhos turvos, alguma coisa em mim merece às vezes esse
milagre. E eu o conservo como um amuleto que me protegesse do desastre cotidiano.
Como se vê, o tempo pretérito não mais representa instância secundária,
periférica ao presente; ao contrário, se valida como experiência de alguma forma ainda
vívida, legitimada pela certeza de que o “passado existe em algum lugar”. Motivado
pela “necessidade fundamental [...] de não perder o tempo”, o poeta eterniza o minuto
que passa recolhendo-o na lembrança. A memória adquire, assim, posição de destaque,
sendo o atributo que viabiliza o aproveitamento do passado como matéria-prima do
fazer poético.
O presente, centro do poema “Tempo-eternidade”, aqui só interessa pela
“possibilidade de converter-se em passado”, o que deixa clara a supremacia do tempoque-
foi sobre o tempo-que-é. Esse, ofuscante por seu “fulgor obsessivo”, cede passo à
suavidade das lembranças, as quais, em peculiar elaboração cronológica, surgem como
elementos formadores do mundo exterior. Voltando-se para este universo erigido a

partir das recordações, o poeta abandona a vivência plena do agora e inaugura uma
dinâmica conducente ao passado, que se apresenta como principal interlocutor no
diálogo com o tempo.
A admissão de “que às vezes o presente já tenha, em toda a sua evidência, uma
suavidade de lembrança” sugere a sobreposição entre o agora e o tempo pretérito. Nos
“raros momentos” em que se entrega a “uma tal limpidez de alma, [a] um tal
despojamento das ambições e dos medos em que nos destroçamos”, o poeta se
salvaguarda do “excesso de consciência” próprio do presente e experimenta, no agora, a
calma oferecida pelo que não o ameaça, por já ter ocorrido. “Possivelmente é uma
lembrança”, cogita, deslocando-se da atividade de vivenciar o presente – ou recordar e
configurar as coisas, ao menos – para a passividade de ser lembrado por seu passado e,
em conseqüência, acomodar-se “em uma gratidão de serenidade”.
Ao promover o retorno de experiências pregressas, a memória constrói, para
além do “abismo-lógica”, um universo imune à intensidade do presente, no qual o poeta
se exila das aflições do agora. Milagre ou amuleto, este cosmo se alastra pela literatura
de Mendes Campos em poemas (e crônicas) que servem de refúgio ao “desastre cotidiano”.

CAMPOS, Paulo Mendes. “A fugacidade de todas as coisas” (fragmentos). In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1984. Este poema foi transformado na crônica “O Reino das Lembranças”, publicada em O amor acaba.


Os Domingos

Todas as funções da alma estão perfeitas neste domingo.
O tempo inunda a sala, os quadros, a fruteira.
Não há um crédito desmedido de esperança
Nem a verdade dos supremos desconsolos –
Simplesmente a tarde transparente,
Os vidros fáceis das horas preguiçosas,
Adolescência das cores, preciosas andorinhas.
Na tarde – lembro – uma árvore parada,
A alma caminhava para os montes,
Onde o verde das distâncias invencidas
Inventava o mistério de morrer pela beleza.
Domingo – lembro – era o instante das pausas,
O pouso dos tristes, o porto do insofrido.
Na tarde, uma valsa; na ponte, um trem de carga;
No mar, a desilusão dos que longe se buscaram;
No declive da encosta, onde a vista não vai,
Os laranjais de infindáveis doçuras geométricas;
Na alma, os azuis dos que se afastam,
O cristal intocado, a rosa que destoa.
Dos meus domingos sempre fiz um claustro.
As pétalas caíam no dorso das campinas,
A noite aclarava os sofrimentos,
As crianças nasciam, os mortos se esqueciam mortos,
Os ásperos se calavam, os suicidas se matavam.
Eu, prisioneiro, lia poemas nos parques,
Procurando palavras que espelhassem os domingos.
E uma esperança que não tenho.

CAMPOS, Paulo Mendes. Os domingos. In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984


À morte (fragmentos)
I
Tenho olhos para não estar cego quando chegar,
Tenho mãos para pressenti-la no ar, quando chegar,
Quando de tudo que vivi chegar, todos os sonos e insônias,
De minhas devassidões, anseios, aborrecimentos,
Quando a grande e pequenina morte que carrego comigo chegar.
[...]
Veio ter comigo muitas vezes. Desceu ao ombro
Do menino. Veio de mãos dadas com o perfume
Das acácias, quando um piano insinuava
Uma coisa qualquer, e eu já não farejava na cidade
As minhas costumeiras mágoas.
Veio com a beleza e com a melancolia, bateu às minhas costas
Nas praias, nos píncaros, nas barbearias, nas salas de aula
Ou quando olhava, frágil de carinho, um cesto de peixes do mar.
Tocou os tambores das paradas militares,
Foi o vento que vi esvoaçar o véu da noiva,
Agitou no ar bandeiras cívicas, inaugurou a estátua,
Inventou-me a ternura, a bondade, a minha fome.
Eu sou tudo ela.
Se a esqueço, não me esquece. E dorme em mim.
E sonha em mim os piores sonhos deste mundo.
Nunca pude dizer tudo o que eu quero
Porque ela não quer.
Meu verso se fez trôpego e medido
Por causa dela.
Meu riso se fez tímido,
Meus passos foram passos tortos de bêbado,
Minha sabedoria foi uma seqüência de trevas,
Meus amores ficaram inconclusos,
Minhas afeições não valeram,
Minhas alegrias foram alegrias loucas de louco.
II
Vai comigo a morte, vou comigo à morte.
(Quando olho o mar eu me canso,
Se leio poesia me aborreço,
Quando durmo não descanso,
Se me embriago me entristeço.)
Exatamente do tamanho do meu corpo.
Dei por mim, e meus dedos estavam cruzados.
Havia um zumbido de moscas quando me deitei
E os círios pálidos nos meus pés mais pálidos.
[...]
Mísero e covarde,
Cheguei a amá-la.
Viva, inquieta, desatinada,
Cheguei a procurá-la
Nos cemitérios, nos teatros, nos campos de futebol,
E marquei a tinta vermelha nos livros o seu nome.
Nunca mais!
Morte, tens em mim tua vitória.

CAMPOS, Paulo Mendes. À morte (fragmentos). In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. Este poema foi adaptado na crônica “Tens em mim tua vitória”, publicada em O amor acaba.

A Morte
Ontem sonhei com a morte
Por duas horas desertas:
As pálpebras não se fecharam,
Antes ficaram abertas.
Os olhos esbugalhados
Cravados num ponto incerto,
Por fora desesperados,
Por dentro o mal do deserto.
Todo de preto vestido
Me aparteava a nudez
De estar ali sem sentido
De um mundo que se desfez.
Se alguém quisesse podia
Cuspir-me em cima do rosto
O nojo que lhe subia
De ver-me assim tão composto.
Talvez um ríctus na boca
O meu segredo explicasse,
Foi-me a vida pouca
E era a morte o meu disfarce.
Vi-me no esquife hediondo,
As mãos cruzadas de vez.
Vi-me só me decompondo,
Doído de lucidez.
Senti o cheiro das flores,
As velas que crepitavam,
O enjôo forte das cores
Que minha morte enfeitavam.
Vi um remorso ingente
Chegar ao pé do caixão,
Um animal repelente
Feito de amor e paixão.
Um padre de voz plangente
Depois de orar disse amém,
Em torno os olhos da gente
Me sepultavam também.
Sei que tudo era aflição
No meu destino acabado:
O terror da solidão
Ia comigo deitado.
CAMPOS, Paulo Mendes. A morte. In: Poemas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984


A Uma Bailarina

Quero escrever meu verso no momento
Em que o limite extremo da ribalta
Silencia teus pés, e um deus se exalta
Como se o corpo fosse um pensamento.
Além do palco, existe o pavimento
Que nunca imaginamos em voz alta,
Onde teu passo puro sobressalta
Os pássaros sutis do movimento.
Amo-te de um amor que tudo pede
No sensual momento em que se explica
O desejo infinito da tristeza,
Sem que jamais se explique ou desenrede,
Mariposa que pousa mas não fica,
A tentação alegre da pureza.
CAMPOS, Paulo Mendes. A uma bailarina. In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1984


Poema Didático

Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo
Como fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.
Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos,
Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco.
No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me,
Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me,
Morto de meu próprio pensamento, destruí-me,
Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me.
Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo,
Como fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria
Que se deita sobre a cidade, olhando a ferrovia, a fábrica,
E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais.
Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz,
Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio
E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar?
Meu instante agora é uma supressão de saudades. Instante
Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio
Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros.
Cansei-me de ser visão: agora sei que sou real em um mundo
[real.
Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse,
E não olhei a ferrovia – mas o homem que sangrou na ferrovia –
E não olhei a fábrica – mas o homem que se consumiu na
[fábrica –
E não olhei mais a estrela – mas o rosto que refletiu o seu fulgor.
Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto?
O mundo, companheiro, decerto não é um desenho
De metafísicas magníficas (como imaginei outrora)
Mas um desencontro de frustrações em combate.
Nele, causa primeira, existe o corpo do homem
– cabeça, tronco, membros, aspirações a bem-estar –
E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito.
Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética
Ou vaga adivinhação de poderes ocultos, rosa
Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora.
O mundo nasceu das necessidades. O caos, ou o Senhor,
Não filtraria no escuro um homem inconseqüente,
Que apenas palpitasse ao sopro da imaginação. O homem
É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo –
Se podemos admiti-lo – não se redime em injustiça.
Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo
Entre os filhos da terra. Força – aos que o herdaram –
É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora,
Quando ainda me perturbava a flor e não o fruto,
Quando ainda sofria sobre as armações metálicas do mundo,
Acuado como um cão metafísico, eu gania para eternidade,
Sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo,
A vida enganou a vida, o homem enganou o homem.
Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento
De todos: se multipliquei a minha dor,
Também multipliquei a minha esperança.

- CAMPOS, Paulo Mendes. Poema didático. In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.


Testamento do Brasil (fragmentos)

Que se faça já a partilha.
Só de quem nada possui
nada de nada terei.
Que seja aberto na praia,
não na sala do notário,
o testamento
[...]
Da Zona da Mata quero
o Ford envolto em poeira
por esse Brasil precário
dos anos vinte (ou twenties),
quando o trompete de jazz
ruborizava a aurora
cor de cinza de Chicago.
Do Alto Rio Negro
[...]
quero a pedra onde não pude
dormir à beira do rio,
pensando em nós-brasileiros
–– entrelaçados destinos ––
como contas carcomidas
de um rosário de martírios.
[...]
Da porta pobre da venda
de todos os povoados
quero o silêncio pesado
do lavrador sem trabalho.
[...]
Da cidade da Bahia
quero os pretos pobres todos,
quero os brancos pobres todos,
quero os pasmos tardos todos.
Do meu Rio São Francisco
quero a dor do barranqueiro,
quero as feridas do corpo,
quero a verdade do rio,
quero o remorso do vale,
quero os leprosos famosos,
escrofulosos famintos,
quero roer como o rio
o barro do desespero.
Dos mocambos do Recife
quero as figuras mais tristes,
curvadas mal nasce o dia
em um inferno de lama.
[...]
Quero a fome do Nordeste,
toda a fome do Nordeste.
[...]
De Ouro Preto o que eu quero
são as velhinhas beatas
e a água do chafariz
onde um homem se dobrou
para beber e sentiu
a pobreza do Brasil.
[...]
Do Rio quero as favelas,
a morte que mora nelas.
De São Paulo quero apenas
a banda podre da fruta,
as chagas do Tietê.
[...]
Da aurora do Brasil
–– bezerra parida em dor ––
apesar de tudo, quero
a violência do parto
(meu vagido de esperança).

CAMPOS, Paulo Mendes. Testamento do Brasil. In: Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.


Cana Amarga


Um dia, o engenheiro Salgado estava aqui no Rio, por acaso diante de um colégio na hora da saída, quando uma irmã de caridade, fungando desconfiança, perguntou-lhe:

— O senhor está esperando criança?

— Não, senhora, sou gordo assim mesmo; distúrbio glandular, dizem os médicos.

Mas o diálogo insustentável de sua vida nada teve a ver com o seu corpo enorme. Foi em uma estrada de rodagem no interior de Pernambuco. O caminho se adentrava em um canavial, e Salgado, menino de engenho no Ceará, sentiu vontade de chupar cana, parou o carro, afastou os arames da cerca. Cortar cana, enramá-la num feixe é coisa que todo bom nordestino faz em um átimo. Com o molho às costas, preparava-se de novo para sair, quando ouviu uma voz cantada à maneira da terra e de frieza metálica:

— Moço.

Entre os pés de uma touceira, espingarda na mão, estava um caboclo de olhar tão impessoal e gelado quanto a voz que o chamara.
— Às suas ordens, conterrâneo.

— Que está fazendo aqui, moço?

— Ia passando de automóvel...

— Passando por onde, moço?

— Aí pela estrada.

— E o que está fazendo então aqui dentro, moço?

— O senhor queira me desculpar...

— Desculpar o que, moço?

— Eu ter entrado e apanhado um pouco de cana.

— A cana era sua, moço?

— Mas o senhor vai compreender...

— Compreender o que, moço?

— Estou indo pra casa de um irmão e meus sobrinhos gostam muito de cana.

— Cana dos outros, moço?

— Um pouquinho de cana de nada...

— Como é que vai entrando em terra dos outros pra roubar cana, moço?

— Bem, eu não queria roubar.

— Queria roubar, sim, moço.

— Ia procurar alguém e pagar.

— Mentira, moço.

— Pois então eu pago agora.

— Pagar o que, moço?

— A cana. Quanto é?

— Quanto é o que, moço?

— A cana.

— Quem está vendendo cana, moço?

— Ora, meu irmão, escute uma coisa: essa conversa está ficando aborrecida, já não sou mais criança, vou dar o fora. Pode ficar com a cana.

— Espere aí, moço.

— Diga logo.

— Leve a cana, moço.

— Não quero cana.

— Leve a cana, moço.

— Só pagando.

— Não estou vendendo; leve a cana, moço.

— Então, muito obrigado, desculpe o mau jeito.

— Não há de que, moço.

- No livro
"O cego de Ipanema", Editora do Autor; Rio de Janeiro; 1960


Receita de Domingo


Ter na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à terra só ao som da trombeta do arcanjo.

Café e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão — caçarolas, panelas, frigideiras, cristais anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente. Também o canário belga do vizinho descobrir deslumbrado que faz domingo.

Enquanto tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.

Só depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilingüida de toda a redondeza.

Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais kar do que os próprios cavaleiros.

Comprar para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão doce, refrigerantes, balões em forma de pingüim, macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distraído no momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda não contrariar demais as crianças.

No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.

A caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.

O banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de pingue-pongue.

Novamente em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more.

Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.

No livro "O Cego de Ipanema", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960


Ser Brotinho

Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.

Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.

É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

É telefonar muito, estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.

É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.

Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.

Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.

No livro “
O Cego de Ipanema”, Editora do Autor; Rio de Janeiro, 1960


Os Reis Magos


Existiam no Oriente três homens maduros, Gaspar, Melquior, Baltazar, que acreditavam em tudo; e porque viam em tudo uma linguagem estrangeira, eles se movimentavam entre os textos radiosos da esperança. E só acreditavam que estivéssemos no mundo, nem que o nosso tempo fosse o tempo, nem que a nossa vida fosse a vida, mas que o mundo, o tempo e a vida fossem portas trancadas, e a chave fosse a imaginação do homem. Pois é preciso imaginar para crer.

Gaspar, Melquior, Baltazar sabiam que o mundo significa outra coisa: e, se um grito de gralha se perde acima dos abetos, não é um grito de gralha, mas um augúrio para o sonho do homem: e se o próprio sol há de morrer, e o homem vive na escuridão, a verdadeira luz precisa ser adivinhada. Pois a luz que nos alumia também não é a verdadeira luz.

E enquanto todos ansiavam angustiadamente por um milagre, Gaspar, Melquior e Baltazar já estavam satisfeitos de todos os milagres que se realizam cada dia; o milagre do dia e da noite; o milagre da água, da terra e do fogo; o milagre de ter olhos e ver; o milagre de ter ouvidos e ouvir; o milagre de ter um corpo; então, já satisfeitos de viver em um mundo de milagres, eles viram a estrela que os aliviava das maravilhas de todos os dias, pois era uma estrela inventada, uma estrela que os outros homens não viam.

E os três reis magos seguiram a estrela ao longo de duras noites de inverno; e, chegando a Belém, a estrela parou acima do humilde lugar onde se encontravam um menino e sua mãe. E, abrindo os cofres de ouro, incenso e mirra, eles adoraram o símbolo que se fez carne, prostrados diante do nascimento, da glória, da crucificação e da morte. A vida deixou de ser um milagre. E Gaspar, Melquior e Baltazar puseram-se em marcha em busca de seus reinos contentes de terem visto uma criança que não era um milagre.

No livro "O Amor Acaba", Editora Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 1999


Acorrentados


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

No livro "
O Anjo Bêbado", Editora Sabiá; Rio de Janeiro; 1969


SENTIMENTO DO TEMPO


 
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.



Declaração de males


Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda.

Antes de tudo devo declarar que já estou, parceladamente, à venda.
Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.
Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.
Marchei em colégio interno durante seis anos mas nunca cheguei ao fim de nada, a não ser dos meus enganos.
Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.
Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pegador de operário.
Já estive, sem diagnóstico, bem doente.
Fui acabando confuso e autocomplacente.
Deixei o futebol por causa do joelho.
Viver foi virando dever e entrei aos poucos no vermelho.
No Rio, que eu amava, o saldo devedor já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.
Não posso beber tanto quanto mereço, pela fadiga do fígado e a contusão do preço.
Sou órfão de mãe excelente.
Outras doces amigas morreram de repente.
Não sei cantar. Não sei dançar.
A morte há de me dar o que fazer até chegar.
Uma vez quis viver em Paris até o fim, mas não sei grego nem latim.
Acho que devia ter estudado anatomia patológica ou pelo menos anatomia filológica.
Escrevo aos trancos e sem querer e há contudo orgulhos humilhantes no meu ser.
Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?
Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.
Minha cosmovisão é míope, baça, impura, mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.
Não bebi os vinhos crespos que desejara, não me deitei sobre os sossegos verdes que acalentara.
Sou um narciso malcontente da minha imagem e jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.
Não acredito nos relógios... the pule cast of throught... sou o que não sou (all that I am I am not).
Podia ter sido talvez um bom corredor de distância: correr até morrer era a euforia da minha infância.
O medo do inferno torceu as raízes gregas do meu psiquismo e só vi que as mãos prolongam a cabeça quando me perdera no egotismo.
Não creio contudo em myself.
Nem creio mais que possa revelar-me em other self.
Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e da divina medida.
Sou o próprio síndico de minha massa falida.
Não amei com suficiência o espaço e a cor.
Comi muita terra antes de abrir-me à flor.
Gosto dos peixes da Noruega, do caviar russo, das uvas de outra terra; meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.
Fatigante é o ofício para quem oscila entre ferir e remir.
A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.
A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num instante.
Decerto sou crucificado por ter amado mal meu semelhante.
Algum deus em mim persiste
mas não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que existe.
Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é lua cheia.
Persistirá talvez também, ao rumor da tormenta, algum canto da sereia.
Deixei de subir ao que me faz falta, mas não por virtude: meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.
Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna de Platão: vivo num mundo de mentiras captadas pela minha televisão.
Jamais compreendi os estatutos da mente.
O mundo não é divertido, afortunadamente.
E mesmo o desengano talvez seja um engano.

No livro "O amor acaba", Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 1999 (Org. de Flávio Pinheiro)


O Amor Acaba


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Do livro "O amor acaba", Editora Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 1999
 
 
BIBLIOGRAFIA

A Palavra Escrita.  (poesias) Ed. Hipocampo; Rio de Janeiro; 1951

Forma e Expressão do Soneto. (antologia), 1952

Testamento do Brasil. (poesia), 1956

O Domingo Azul do Mar. (poemas); Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 1958

Páginas de Humor e Humorismo. (antologia, ampliada e reeditada sob o título Antologia Brasileira de
Humorismo; 1965

O Cego de Ipanema. (crônicas) Ed. do Autor; Rio de Janeiro; 1960

Homenzinho na Ventania. (crônicas) Ed. do Autor; Rio de Janeiro, 1962

O Colunista do Morro. (crônicas) Ed. do Autor; Rio de Janeiro, 1965

Testamento do Brasil e Domingo Azul do Mar. (poemas em edição conjunta) Ed. do Autor; Rio de Janeiro; 1966

Hora do Recreio. (crônicas) Editora Sabiá; Rio de Janeiro, 1967

O Anjo Bêbado, crônicas, Ed. Sabiá - Rio de Janeiro; 1969

Poemas. 1979

Diário da Tarde. 1981

Trinca de Copas, 1984

Rir é o Único Jeito – supermercado. Ed. Ediouro; Rio de Janeiro; (reedição de Hora do Recreio, com novo título (livro de bolso)

O Amor Acaba - crônicas líricas e existenciais. Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 1999

Cisne de Feltro. (crônicas autobiográficas) Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 2000

Alhos e Bugalhos. Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 2000

Brasil Brasileiro - crônicas do país, das cidades e do povo.
Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 2000

Murais de Vinícius e Outros Perfis. Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 2000

O Gol é Necessário - crônicas esportivas. Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 2000

Artigo indefinido. Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 2000

De Um Caderno Cinzento - apanhadas no chão. Ed. Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 2000

Balé do Pato e Outras Crônicas. Editora Ática; S. Paulo; 2003

A Volta ao Mundo em 80 Dias. (tradução e adaptação do livro do mesmo nome, de Júlio Verne) Ediouro; 2004

Quatro Histórias de Ladrão. Editora Agir; Rio de Janeiro; 2005







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