sábado, 10 de junho de 2017

MÁSCARAS. Menotti Del Picchia, (1892 - São Paulo - 1988), trechos escolhidos.

A Colombina o Pierrô e o Arlequim são três dos muitos personagens do Teatro d’Arte em Roma, e cujas caravanas itinerantes realizadas por meio de companhias de atores da mesma família, viajavam em carroças por vários países para difundir a Commédia Dell’Arte e influenciaram outras nações. Há indícios de que teve origem nas fábulas Atellanas criadas na cidade de Atella no sul da Itália pelos italianos que falavam o dialeto osco. Eram comédias de baixo nível desempenhadas por jovens de boas famílias os quais ridicularizavam os hábitos das classes mais baixas.  

Paulo Menotti Del Picchia filho de pais italianos da região da Toscana, nasceu em São Paulo em 1892 e faleceu na mesma capital em 1988, aos noventa e seis anos. Foi agricultor, advogado, jornalista, tabelião, político, romancista, cronista, pintor, ficcionista, ensaísta e poeta brasileiro, autor de poesias como “Juca Mulato” e “Máscaras” e de romances como “Laís” e também “Salomé”. Fez parte do movimento modernista de 1922 e se tornou membro da Academia Brasileira de Letras.

MÁSCARAS - Mennotti Del Picchia.

PERSONAGENS:

Arlequim: Um desejo;
Pierrot: Um Sonho;
Colombina: A Mulher.
Em qualquer terra em que os homens amem.
Em qualquer tempo onde os homens sonhem.
Na vida.

BEIJO DE ARLEQUIM
I
O crescente cintila como uma cimitarra. Lírios longos, grandes mãos
brancas estendidas para o luar bracejam nas pontas das hastes. Uma
balaustrada. Uma bandurra. Um Arlequim. Um Pierrot e sobre as
máscaras e os lírios, a volúpia da noite, cheia de arrepios e de aromas.

ARLEQUIM diz:
Foi assim: deslumbrava a fidalga beleza da turba nos salões da Senhora Duquesa.
Um cravo, em tom menor, numa voz quase humana, tecia o madrigal de uma antiga pavana. Eu descera ao jardim. Cheirava a heliotrópio e vi, como quem vê num vago sonho de ópio, uma loura mulher...
PIERROT
Loura?
ARLEQUIM
Como as espigas...
Como os raios de sol e as moedas antigas... Notei-lhe, sob o luar, a cabeleira crespa,
anca em forma de lira e a cintura de vespa, um cravo no listão que o seio lhe bifurca,
pezinhos de mousmé, olhos grandes, de turca... A boca, onde o sorriso era como uma abelha, recendia tal qual uma rosa vermelha.

PIERROT
Falaste-lhe?

ARLEQUIM
Falei...

PIERROT
E a voz?

ARLEQUIM
Vaga e fugaz
Tinha a voz de uma flor, se acaso a flor falasse...
PIERROT
E depois?

ARLEQUIM
Eu fiquei, sob a noite estrelada, decidido a ousar tudo e não ousando nada...
Vinha dela, pelo ar, espiritualizado, numa onda volúpia, um cheiro de pecado...
Tinha a fascinação satânica, envolvente, que tem por um batráquio o olhar duma serpente... E fiquei, mudo e só, deslumbrado e tristonho, sentindo que era real o que eu julgava um sonho! Em redor o jardim recendia.
Umas poucas tulipas, cor de sangue, abertas como bocas, pela voz do perfume insinuavam perfídias...
Tremia de pudor a carne das orquídeas... Os lírios senhoriais, esbeltos como galgos,
abriram para o céu cinco dedos fidalgos fugindo à mão floral do cálix longo e fino.
Um repuxo cantava assim como um violino e, orquestrando pelo ar as harmonias rotas, desmanchava-se em sons, ao desfazer-se em gotas! Entre a noite e a mulher, eu trêmulo hesitava: Se a noite seduzia, a mulher deslumbrava!
Dei uns passos
Ao ruído agitou-se assustada.
Viu-me...
PIERROT
E ela que fez?
ARLEQUIM
Deu uma gargalhada.
PIERROT
Por quê?
ARLEQUIM
Sei lá! Mulher... Talvez porque ela achasse ridículo Arlequim com ar de Lovelace...
Aconcheguei-me mais: “Deus a guarde, Senhora!”
- Obrigada. “Quem és?”
- “Um arlequim que a adora!”
Vinha do seio dela, entre a renda e a miçanga, um cheiro de mulher e um cheiro de cananga. Eram os olhos seus, sob a fronte alva e breve, como dois astros de ouro a arder num céu de neve. Mordia, por não rir, o lábio úmido e langue, vermelho como um corte inda vertendo sangue... E falei-lhe de amor...
PIERROT
E ela?

ARLEQUIM
Ficou calada...
Meu amor disse tudo, ela não disse nada, mas ouviu, com prazer, a frase que renova
no amor que é sempre velho, a emoção sempre nova!
PIERROT
Que lhe disseste enfim?
ARLEQUIM
O ardor do meu desejo, a glória de arrancar dos seus lábios um beijo, a volúpia infernal dos seus olhos devassos, o prazer de a estreitar [...]
PIERROT, assustado:
Tu ousaste demais...
ARLEQUIM, cínico:
Ingênuo! A mulher bela
adora quem lhe diz tudo o que é lindo nela. Ousa tudo, porque todo o homem enamorado se arrepende, afinal, de não ter tudo ousado.
PIERROT
E ela?
ARLEQUIM
Vinha pelo ar, dos zéfiros no adejo, um perfume de amor lascivo como um beijo, como se o mundo em flor vibrasse, quente e vivo, no erotismo triunfal de um amor coletivo!
PIERROT, fremindo:
E ela?
ARLEQUIM
Ansiando, ouviu toda essa paixão louca, levantou-se...
PIERROT
Depois?
ARLEQUIM, triunfante:
Deu-me um beijo na boca!
Um silêncio cheio de frêmito. Os lírios tremem. Pierrot
olha o crescente. Arlequim dá um passo, vê a brandura,
toma-a entre as mãos nervosas e magras e tange distraído,
as cordas que gemem.
ARLEQUIM
Linda viola.
PIERROT, alheado:
Bom som...
ARLEQUIM
Que musicais surpresas não encerram a mudez
destas cordas retesas...
Confidencial a Pierrot:
Olha: penso, Pierrot, que não existe em suma, entre a viola e a mulher, diferença nenhuma. Questão de dedilhar, com certa audácia e calma, numa...estas cordas de aço, e na outra...as cordas d’alma!
Suavemente, exaltando-se:
O beijo da mulher! Ó sinfonia louca da sonata que o amor improvisa na boca... No contado do lábio, onde a emoção acorda, sentir outro vibrar, como vibra uma corda... À vaga orquestração da frase que sussurra [...] Desfalecer ouvindo a música que canta no gemido de amor que morre na garganta...Colar o lábio ardente [...] ir aos poucos subindo...ir aos poucos subindo...até alcançar a boca e escutar, num arquejo, o universo parar na síncope de um beijo! [...]
Eis toda a arte de amar! Eis, Pierrot fantasista, a suprema criação da minha alma de artista. Compreendes?
PIERROT, ansiado:
E a mulher?
ARLEQUIM, lugubremente:
A mulher? É verdade...
Levou naquele beijo a minha mocidade.
PIERROT
E agora? Onde ela está?
ARLEQUIM, ironicamente místico:
No meu lábio, no ardor desse beijo, que é todo um romance de amor!
Seduzido pela angústia da saudade:
No temor de pedi-lo e na glória de tê-lo...
No gozo de prová-lo e na dor de perdê-lo...
No contato desfeito e no rumor já mudo...
No prazer que passou... Nesse nada que é tudo:
O passado... A lembrança... A saudade... O desejo...
Balbuciando:
Um jardim... Um repuxo... Uma mulher... Um beijo...
(Longo silêncio cheio de evocação e de cismas).
PIERROT, ingenuamente:
É audaciosa demais a tua história...

ARLEQUIM, ríspido:
Enfim, um Arlequim, Pierrot, é sempre um Arlequim. Toda história de amor só presta se tiver como ponto final, um beijo de mulher!


O SONHO DE PIERROT

II

PIERROT
Eu também, Arlequim, nesta vida ilusória, como todos Pierrots, eu tenho uma história, vaga, talvez banal, mas triste como um cântico...
ARLEQUIM, sarcástico:
Não compreendo um Pierrot que não seja romântico, branco como o marfim, magro como um caniço, enchendo o mundo de ais, sem nunca passar disso.
PIERROT
Debochado Arlequim!
ARLEQUIM
Branco Pierrot tristonho...

PIERROT
Teu amor é lascívia!
ARLEQUIM
E o teu amor é sonho...
PIERROT
É tão doce sonhar!... A vida, nesta terra, vale apenas, talvez, pelo sonho que encerra. Ver vaga e espiritual, das cismas nos refolhos, toda uma vida arder na tristeza de uns olhos; não tocar a que se ama e deixar intangida aquela que resume a nossa própria vida, eis o amor, Arlequim, misticismo tristonho, que transforma a mulher na incerteza de um sonho...

ARLEQUIM, escarninho:
Esse amor tão sutil que teus nervos reclamam só se aplica aos Pierrots?
PIERROT
Não! A todos os que amam!
Aos que têm esse dom de encontrar a delícia na intenção da carícia e nunca na carícia... Aos que sabem, como eu, ver que no céu reflete a curva do crescente, um vulto de Pierrette...
ARLEQUIM, zombeteiro:
Eterno sonhador! Tu crês que vive a esmo tudo aquilo que sai de dentro de ti mesmo. Vês, se fitas o céus, garota e seminua, Colombina sentada entre os cornos da lua... Quantas vezes não viste o seu olhar abstrato nos fosfóreos vitrais das pupilas de um gato?
PIERROT
Essas frases cruéis, que mordem como dentes, só mostram, Arlequim, que somos diferentes. Mas minha alma, afinal, é compassiva e boa: Não compreendes Pierrot e Pierrot te perdoa...
ARLEQUIM
Tua história, vai lá! Senta-te nesse banco. Conta-me: “Era uma vez um Pierrot muito branco...”
A história de um Pierrot sempre nisso consiste... Começa!
PIERROT narrando:
“Era uma vez... Um Pierrot... Muito triste...”
Uma voz, na distância, corta argentina, a narração de Pierrot.
A VOZ
Foi um moço audaz, que vejo
no meu sonho claro e doce,
O amor que primeiro amei.
Abraçou-me: deu-me um beijo
e, depois, lento, afastou-se,
e nunca mais o encontrei.

Num ser pálido e doente
resume-se o que consiste
o segundo amor que amei.
Ele olhou-me tristemente...
Eu olhei-o muito triste...
E nunca mais o encontrei!
Esse amor deu-me o desejo
daquele beijo encontrar.
Mas nunca, reunidas, vejo,
a volúpia desse beijo,
e a tristeza desse olhar...
A voz agoniza nos ecos. Pierrot e Arlequim tendem o ouvido procurando no ar mais uma estrofe.
ARLEQUIM
Essa voz...
PIERROT
Essa voz...
ARLEQUIM
Só de ouvi-la estremeço...
PIERROT
Eu conheço essa voz!
ARLEQUIM
Essa voz eu conheço...
Um sopro de brisa arrepia as plantas.
PIERROT
Escuta...
ARLEQUIM
Escuta...
PIERROT
Ouviste?
ARLEQUIM
Um sussurro...
PIERROT
Um lamento...

ARLEQUIM
Foi o vento talvez.
PIERROT
Sim. Talvez fosse o vento.
ARLEQUIM
Conta a história, Pierrot.
Pierrot continuando:
Numa noite divina
como tu, num jardim, encontrei Colombina. Loira como um trigal e branca como a lua.
ARLEQUIM
Era loira também?
PIERROT
Tão loira como a lua...
Eu descera ao jardim quebrado de fadiga. Dançavam no salão...
ARLEQUIM, interrompendo:
... Uma pavana antiga,
e notaste ao luar a cabeleira crespa...
PIERROT
... A anca em forma de lira...
ARLEQUIM
... e a cintura de vespa!
PIERROT
Mãos mimosas, liriais...
ARLEQUIM
Em minúcias te expandes!

PIERROT
Um pé muito pequeno...
ARLEQUIM
Uns olhos muito grandes!
Uma mulher igual à que encontrei na vida?
PIERROT, ofendido:
Enganas-te, Arlequim, nem mesmo parecida!
Era tal a expressão do seu olhar profundo,
que não pode existir outro igual neste mundo!
Felinamente ardia a íris verdoenga e dúbia,
como o sinistro olhar de uma pantera núbia.
Esses olhos fatais lembravam traiçoeiras
feras, armando ardis nos fojos das olheiras!
Tão vivos que, Arlequim, desvairado, os supus
duas bocas de treva a erguer brados de luz!
Tripudiavam o bem e o mal nos seus refolhos.

ARLEQUIM, cismando:
Essas coisas também ardiam nos seus olhos...
PIERROT
Tive medo, Arlequim! Vendo-os, num paroxismo
eu tinha a sensação de estar sobre um abismo.
Não sei por que o olhar dessa estranha criatura
era cheio de horror... E cheio de doçura!
Eu desejava arder nessas chamas inquietas...
ARLEQUIM
Tendo o fim dos Pierrots?
PIERROT
Tendo o fim dos Poetas!
Aconcheguei-me dela, a alma vibrante louca, o coração batendo...
ARLEQUIM
E beijaste-lhe a boca!
PIERROT, cismarento:
Não... Para que beijar? Para que ver, tristonho, no tédio do meu lábio o vácuo do meu sonho... Beijo dado, Arlequim, tem amargos ressábios...
Sempre o beijo melhor é o que fica nos lábios,
esse beijo que morre assim como um gemido,
sem ter a sensação brutal de ser colhido...
ARLEQUIM
E que disse a mulher?
PIERROT
Suspirou de desejo...
ARLEQUIM, mordaz:
Preferia bem vês, que lhe desses um beijo!
PIERROT
Não. Ela olhou-me. Olhei... E vi que, comovida, sentiu que, nesse olhar, eu punha a minha vida...
Um silêncio cheio de angústias vagas.
Sob o luar claro as almas brancas dos
lírios evocam fantasmas de emoções
mortas. Os espectros das memórias
parecem recolher, como numa urna invisível, a saudade romântica de Pierrot...
ARLEQUIM, tristonho:
Essa história, Pierrot, é um pouco merencória...
PIERROT
A história desse olhar é toda a minha história.
ARLEQUIM
E não a viste mais?
PIERROT
Nem sei mesmo se existe...

ARLEQUIM, contendo o riso:
É de fazer chorar! Tudo isso é muito triste!
Tomando-o pelo braço, confidencialmente:
Entretanto, ouve aqui, a guisa de consolo:
diante dessa mulher... Foste um Pierrot bem tolo!
Aprende sonhador! Quando surgir o ensejo,
entre um beijo e um olhar, prefere sempre um beijo!

PIERROT, desconsolado:
Lamentas-me Arlequim?

ARLEQUIM
Tu não compreendeste: Choro por não ter colhido o beijo que perdeste.


[...]

Frases escolhidas, da parte I e II

“E falei-lhe de amor...
E ela?
Ficou calada...
Meu amor disse tudo, ela não disse nada, mas ouviu, com prazer, a frase que renova
no amor que é sempre velho, a emoção sempre nova!
Aconcheguei-me dela, a alma vibrante e louca o coração batendo e não beijei-lhe a boca. Não! Para que beijar? Para que ver tristonho, no tédio do meu lábio o vácuo do meu sonho?
Beijo dado, Arlequim, tem amargos ressábios, sempre o beijo melhor é o que fica nos lábios, esse beijo que morre como um gemido, sem ter a sensação brutal de ser colhido.
Ela suspirou de desejo. “Preferia bem vês, que lhe desses um beijo!”
Não! Ela olhou-me. Olhei e vi que comovida, sentiu que nesse olhar eu punha a minha vida! Diante desse alguém foste um Pierrô bem tolo! Aprende sonhador, quando surgir o ensejo, entre um beijo e um olhar prefere sempre um beijo!”



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